A Lenda de D. Fuas (e Nossa Senhora da Nazaré)

Há alguns meses falei da lenda de D. Fuas e de Nossa Senhora da Nazaré.
Algum tempo passou e, quando abriram as inscrições para o Novos Talentos FNAC 2025 decidi participar. O problema? Tinha duas histórias para concorrer. Uma ainda é segredo (que foi a que utilizei), mas a segunda opção posso mostrar aqui…

A luz cheia brilhava sobre a cidade de Nazaré quando Samuel se aproximou do penhasco onde construíram a Ermida da Memória. Era inverno e a temperatura fria era denunciada pelas vestimentas longas e escuras de Samuel que, com uma fisionomia aproximada aos 30 anos e uma presença discreta, lembrava os investigadores de outros tempos como Sherlock Holmes.

Não era nada excêntrico, bem pelo contrário!

O cabelo castanho-escuro, ligeiramente ondulado, caía-lhe desalinhado sobre a testa, como se nunca tivesse tempo ou vontade de o domar. Ainda assim, os olhos é que sempre o distinguiram: cinzentos como o nevoeiro denso das falésias.

Os mesmos olhos de quem tomava atenção a tudo à sua volta. E ele não tinha escolha: nasceu com um dom que lhe concedeu o poder de ouvir todos os pensamentos de quem se aproxima.

Esse talento de ouvir os pensamentos alheios não era tão bom como parecia; aquele “presente” não era nada mais que um fardo constante, uma cacofonia que não lhe dava descanso.

Era por isso que procurava sempre os lugares mais silenciosos, onde o pensamento humano se dissipava: algumas bibliotecas, igrejas ou as falésias onde o vento cantava mais alto que a mente dos homens. Era nesses refúgios que encontrava paz, distante das dores, dos desejos e das dúvidas alheias.

Apesar de reservado, Samuel era inteligente, metódico e profundamente empático. Ele sabia, melhor do que ninguém, que há pensamentos que precisam de ser ouvidos mesmo quando não são ditos.

O vento que lhe batia no rosto trazia o sal e a memória das ondas, mas lá em baixo, o mar dormia tranquilo. Só o leve rebentar das pequenas ondas perturbavam o silêncio. Aquela era uma terra de fé e promessas, mas para ele era, sobretudo, uma terra de silêncio mental.

Apesar do frio, estava tão tranquilo que não se importava de ficar ali mais um pouco. Apertou as abas do casaco para mais perto do pescoço e dos lábios enquanto dava graças ao silêncio. A brisa fria era travada pelo pesado casaco comprido enquanto os seus fios de cabelo ondulavam com o vento.

“Finalmente, um pouco de silêncio” era tudo em que era capaz de pensar. Era difícil viver com aquele dom, mesmo após tantos anos e, por vezes, a luta contra a loucura parecia que ia ser perdida a qualquer momento, mas ele continuava firme. Tinha um objetivo de vida e concentrava todas as suas forças nisso: salvar as almas que podia.

Sim, ele também tinha um lado espiritual muito desenvolvido e tinha como missão salvar o maior número de espíritos que pudesse antes que, eventualmente, sucumbisse à inevitável loucura.

Sem que se apercebesse, um denso nevoeiro inundava a praça atrás dele, vindo das ruas transversais. Não se anunciou com o vento nem com a brisa, surgiu devagar como uma cortina húmida a desenrolar-se sobre o mundo. Primeiro cobriu as casas em volta, depois, as luzes ténues do santuário e da praça, e por fim, engoliu a Ermida e Samuel, que finalmente se apercebeu do que se passava e olhou em volta, curioso.

E então, ouviu: “Não me deixes cair…”

Os seus olhos abriram com aquela surpresa e virou-se em sobressalto.

Ele sabia que aquele não era um pensamento humano. Vinha carregado de ecos, de um sentimento de fé e medo absoluto. Era uma súplica desesperada.

E da névoa, viu sair um veado e, atrás dele, um cavalo a galope que lutava contra as rédeas do cavaleiro. E o penhasco estava já ali à frente.

Rapidamente Samuel percebeu o problema e aproximou-se numa corrida rápida. Gritou, mas era como se a sua voz fosse abafada com o vento. Ouviu um pensamento enquanto parou a corrida por momentos.

“Preciso de ajuda.” — ecoava como um sussurro enquanto o cavalo acelerava atrás do veado.

Voltou a correr e, quando viu o veado cair do penhasco, a sua voz encontrou força e fez-se ouvir.

— Vais cair! — gritou Samuel, sem perceber que o cavaleiro não o ouvia.

Num último instante, quando parecia impossível parar, um grito cortou o nevoeiro:

“Nossa Senhora!”

O cavalo empinou-se e os cascos derraparam, mas não caiu. Ficou suspenso num momento e, depois, como surgiu… desapareceu.

Samuel viu-se novamente sozinho, rodeado por silêncio. Atordoado, permaneceu onde estava e tentou processar o que aconteceu. O nevoeiro afastou-se, recuou por entre os edifícios e desapareceu. Era como se tivesse voltado à realidade, mas ainda assim parecia faltar qualquer coisa.

O seu olhar percorreu a praça de uma ponta à outra e fixou-se no Santuário. Por mais que a noite já estivesse avançada, ele sabia que precisava de respostas e parecia que o tempo estava a passar demasiado depressa.

Avançou para o Santuário, decidido a encontrar respostas nos livros de história da biblioteca daquele local de fé.

A sensação de estar a ser observado não passava. Parecia-lhe que existiam olhos em todas as paredes que observavam todos os seus passos.

Atravessou a praça silenciosa, iluminada por luzes fracas, e encontrou a entrada semiaberta. Estranhou, mas estava decidido a encontrar as respostas de que precisava.

Ao entrar, encontrou uma quietude fora do comum. Parecia que apenas ele existia naquele plano. Apenas se ouviam os seus próprios passos enquanto avançava pelos corredores. O ar era preenchido pelo cheiro de incenso misturado com uma história de séculos.

Samuel facilmente encontrou a biblioteca do santuário, um pequeno espaço reservado onde os livros antigos estavam guardados em estantes de madeira escura. Num momento, percebeu o quão bem se sentia ali, sem ouvir pensamentos a todo o instante. De facto, ele não ouvia mesmo nada e isso sabia tão bem. Aquele vazio mental trazia-lhe uma rara sensação de alívio.

Puxou uma cadeira para sentar-se e folhear o primeiro livro que encontrou. Era um manuscrito antigo sobre a lenda de D. Fuas. As páginas estavam gastas e amareladas pelo tempo, mas Samuel estava convencido de que ia encontrar alguma coisa que escapou anteriormente.

Começou a ler:
“D. Fuas, o cavaleiro destemido, encarou o abismo no promontório de Nazaré. O destino chamava-o, mas a fé na Nossa Senhora manteve-o em segurança. Ao invocar o seu nome, o cavalo parou no último segundo, suspenso no ar, e o abismo fechou-se. Mas, dizem os antigos, que o cavaleiro viu mais do que uma simples intervenção divina. Ele viu algo que o perseguiria pelo resto da sua vida.”

Ele sabia que faltava ali alguma coisa, mas não conseguia perceber o quê. O que teria D. Fuas visto que mais ninguém percebeu ou, pelo menos, de que mais ninguém falava? E qual a razão que o fez aparecer agora?

O nevoeiro de antes voltou. E desta vez, além de cobrir todo o promontório, adentrou o Santuário. Samuel sentiu um calafrio na espinha.

Foi então que ouviu, outra vez, não um pensamento humano, mas uma voz distante, carregado de um desespero imenso.

“Por favor…”

Samuel levantou-se num salto. Sabia o que tinha de fazer, mas ainda faltavam informações. Deixou o livro sobre a mesa e correu para a rua. Uma sensação de urgência crescia no seu corpo. Sabia que tinha de voltar ao penhasco.

O promontório continuava deserto. Nenhuma das casas tinha as luzes acesas e, mesmo se tivesse, não iria conseguir ver nada por causa do nevoeiro. Por momentos ficou desnorteado, sem saber exatamente para que direção tinha de se dirigir, mas rapidamente percebeu e correu na direção do penhasco.

Ao ver a pedra onde o cavalo anteriormente parou, percebeu as marcas dos cascos e decidiu ficar ali perto, atento a qualquer movimento à sua volta. De repente, deixou de ouvir o mar e a brisa parou de bater no seu cabelo.

Ao olhar em volta, percebeu que todos os edifícios desapareceram e, no seu lugar estava um bosque. A luz que iluminava aquele local era a fraca luz do pôr do sol que parecia ter voltado atrás para aquele momento. O muro também desapareceu e podia ver melhor a pedra onde já não se viam as marcas dos cascos, como se ainda não tivessem acontecido os factos que cravaram aquelas marcas ali.
Por entre as árvores, saltou novamente o veado, em direção ao penhasco, seguido de perto por D. Fuas e o seu cavalo. Aquela sensação de aflição volta a preencher o corpo de Samuel, que não consegue mover-se.

E a ilusão corre até ao fim:

“É o fim da linha…”

“Preciso de ajuda!”

O corpo de Samuel é envolvido por nevoeiro e parecia que se alterava. Percebeu que as suas mãos estavam cobertas por umas luvas. Sentiu o seu corpo pesado, envolvido pelo metal pesado da armadura. Segurava umas rédeas e ouviu o relinchar do cavalo. E os seus olhos abriram-se em pânico ao perceber o abismo à sua frente.

Samuel havia tomado o lugar de D. Fuas e, apoderado pelo terror da possível queda, tenta parar o cavalo que não lhe obedece. O veado cai do penhasco e o cavalo pareceu acelerar ainda mais. Grita a plenos pulmões: “Nossa Senhora!” e o cavalo trava, bem no limite, com as patas dianteiras no alto. E o tempo para exatamente assim.

Samuel, na pele de D. Fuas, vê a aparição da Nossa Senhora, no céu e bem à sua frente, envolvida pelos últimos raios do sol. Vê o seu sorriso antes da imagem se ir ao mesmo tempo que o sol se põe.

O cavalo volta para trás e pousa as patas no chão. Em segurança, Samuel salta do cavalo e cai no chão com o peso da armadura, a chorar enquanto olha para o céu que escurece a cada segundo.
Até que percebe que voltou a ser ele mesmo.

“Eu não merecia uma segunda oportunidade. Aquele deveria ser o meu fim!” — ouviu D. Fuas pensar.

— Não! — gritou Samuel para o pensamento que ouviu. — Tu mereceste! Todos merecem uma segunda oportunidade! Até os que têm medo!

A névoa ondulou. O cavalo travou. E um grito ecoou como outrora:

— Nossa Senhora!

Mas desta vez, algo foi diferente. Samuel olhou para a pedra do penhasco e viu o cavalo com D. Fuas. O cavalo pousou as patas, D. Fuas desceu e terminou caído no chão, esgotado.
Samuel aproximou-se e ouviu as suas palavras novamente.

—Eu não merecia uma segunda oportunidade. Aquele deveria ser o meu fim! — gritou D. Fuas.

Era como se Samuel não existisse, por isso nem tentou chamar a atenção do cavaleiro. Ao se levantar, D. Fuas parou quando o seu olhar cruzou o de Samuel. Inicialmente, não trocaram palavras, apenas um leve aceno de gratidão.

Samuel deu um passo em frente antes de tentar conversar com D. Fuas.

— Tu mereceste uma segunda oportunidade. Todos nós merecemos. — Samuel tentou fazê-lo ver a verdade sobre a sua existência e sobre o milagre que vivenciou.

O nevoeiro começou a recuar e as árvores a desaparecer.

— Eu não sei porque fui escolhido, nem sei se mereço realmente. — Desabafou D. Fuas.

O chão tornou-se pedra outra vez. A aragem do mar regressou.

Lentamente, a luz do sol começou a nascer por trás do horizonte. Era manhã.

As nuvens dissiparam-se. A névoa fugia, escoando-se pela falésia, como se nunca tivesse existido.

E então… Samuel voltou a ouvir.

Pensamentos, vozes interiores, confissões e silêncios. Turistas, pescadores, crentes e curiosos. Todos de volta à realidade.

Mas dentro dele, algo permanecia sereno.

Um milagre fora reparado.

E desta vez… foi aceite.


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Um pensamento sobre “A Lenda de D. Fuas (e Nossa Senhora da Nazaré)

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