“O Guardião das Lendas”: Um Pedido de Ajuda

Este ano concorri ao Novos Talentos FNAC.
Não ganhei, infelizmente… mas isso é bom para vocês! Ofereço-vos o texto para que o possam ler, em qualquer lugar e a qualquer hora.
A única coisa que eu peço é um feedback. Combinado?

Alexandre caminhava apressado por uma rua movimentada enquanto bebia o seu Irish Coffee de um copo descartável. Após alguns passos, foi alertado por um toque do seu telemóvel ao receber uma SMS, enviada por um contacto gravado como “Missões”. Nela lia-se “Carolina Ferreira” seguida de uma morada.
Era notável a sua expressão de desconforto ao receber aquela SMS, mas, ao mesmo tempo, era notável a necessidade de ir até ao local descobrir a história daquela pessoa.
Saiu da aplicação das mensagens, o que revelou o wallpaper com o desenho do Selo dos 7 Arcanjos, e guardou o telemóvel de volta no bolso. Terminou a bebida rapidamente, descartou a embalagem no caixote mais próximo e seguiu decidido noutra direção.

***

Alexandre parou à entrada do prédio e deslizou o dedo pela coleção de campainhas até encontrar a certa. Fez uma pausa para respirar fundo, nervoso, e pressionou o botão. A porta abriu de imediato e ele entrou no edifício, deixando que a porta se fechasse e abafasse o barulho do exterior.
Avançou até ao elevador e não perdeu tempo: apertou o botão, impaciente, e fixou o olhar no visor acima que indicava que o elevador vinha do 4º andar. A máquina parecia-lhe muito lenta.
Olhou para o relógio no telemóvel, interrompido apenas por um som abafado que lhe pareceu ter vindo do fundo das escadas. Virou-se rapidamente, mas ao espreitar apenas viu escuridão.
Esqueceu o som quando o elevador finalmente chegou.
Entrou e clicou no botão do 6º andar. A porta automática fechou e o elevador começou a subir. Por alguma razão, sentia-se inquieto e vigiado de todos os ângulos. A inquietude intensificou-se quando as luzes do elevador piscaram descontroladas por segundos.
Tentou manter-se calmo durante o trajeto, pronto para agir a qualquer instante.
Finalmente, o elevador chegou ao 6º andar. A porta abriu com um som mecânico e as lâmpadas voltaram ao normal. Saiu apressado ao mesmo tempo que a porta já se fechava de novo.
Recompôs-se com um inspirar profundo e dirigiu-se a uma das portas. Tocou à campainha uma vez. Duas vezes. Ninguém abria e o tempo passava. O silêncio à sua volta tornava-se cada vez mais desconfortável.
Tocou novamente, desta vez com um toque rápido seguido de um prolongado até que finalmente a porta abriu. Carolina, uma velhinha que devia ter uns 80 anos, espreitou-o por uma pequena fresta, desconfiada.
— Sim? — perguntou, de voz baixa e hesitante.
— Boa tarde. Carolina? Sou o Alexandre. Fui enviado para a visitar. Alguém está preocupado consigo. — informou.
Ela estreitou os olhos.
— Está atrasado.
Carolina olhava em volta constantemente, como se se sentisse vigiada. Mantinha o olhar mais tempo no chão e as mãos permaneciam unidas, como se as massajasse num gesto nervoso e perpétuo.
Após olhar em volta, tensa, abriu a porta completamente.
— Entre. Depressa! — ordenou num sussurro.
Assim que Alexandre atravessou a porta, Carolina fechou-a com rapidez antes de seguir para a sala.
Alexandre observou-a enquanto ela arrancava uma manta velha do sofá e recuou ao ver uma barata desaparecer entre as almofadas. O ambiente era pesado e impregnado de poeira, além do cheiro que era uma mistura de suor, esgoto e lixo.
— Quer um copo de água? — perguntou ela.
— Não é preciso, obrigado. — respondeu, desconfortável.
Ela ficou parada por momentos, de mãos juntas.
— Venho já. — disse por fim, saindo apressada.
Alexandre aproveitou para analisar o ambiente. Aquela sala escura era composta por paredes amareladas e despidas de decoração. A persiana torta queimada pelo sol. Um tapete atolado em pó e cabelos com os cantos enrolados. E a mesa de centro manchada de humidade. Até a poltrona parecia ter sido usada por um gato para afiar as garras.
Os pensamentos de Alexandre foram interrompidos pelo regresso de Carolina, que trouxe consigo dois copos muito limpos de água gelada e entregou-lhe um.
— Vamos sentar-nos? — sugeriu, nervosa.
Enquanto Alexandre recuava, Carolina sentou-se no sofá e deixou a poltrona livre. Era a opção menos repulsiva e acabou por a aceitar.
— Obrigado por ter vindo. — respirou fundo — Acho que deixei entrar algo muito mau na minha casa. — sussurrou, trémula.
— Porquê?
— O ar pesado não lhe diz isso? — questionou, subitamente alerta.
Alexandre negou com um leve movimento.
— Não propriamente. — negou, medindo a sua reação.
Carolina inclinou-se e sussurrou-lhe:
— Eu sei fazer algumas coisas. E sinto-me muito bem quando as faço. — riu-se, com um ar de marota um tanto engraçado como repugnante.
Alexandre manteve-se em silêncio, sem saber o que dizer. Carolina, por seu lado, apertou um pouco o copo nas mãos e ficou séria.
— Não quero que te sintas mal, rapaz. Mas tenho mesmo um problema aqui em casa e preciso da tua ajuda. — desabafou.
Alexandre pousou o copo na mesa e inclinou-se na direção de Carolina, que fitou o copo brevemente antes de voltar a olhar para ele. Alexandre pousou a sua mão na dela a tentar sossegá-la.
— Não se preocupe, vamos corrigir o que quer que esteja a acontecer, está bem?
Importa-se que veja o resto da casa? — pediu com cautela.
Carolina hesitou, claramente desconfortável, mas assentiu por fim.
— Tudo bem.
Alexandre levantou-se.
— Prometo que vou dar o meu melhor para a ajudar, está bem?
Ela não respondeu de imediato, com o olhar preso no copo sobre a mesa.
— Obrigada. — sussurrou.
Alexandre avançou por aquele corredor silencioso. Conseguia ouvir o seu coração bater e sentia-se observado a cada um dos seus passos.
Abriu a primeira porta com pressa, na esperança de encontrar algo que aliviasse a tensão, porém, arrependeu-se de imediato. A casa de banho estava num estado lastimável. O cheiro nauseabundo deixou-o totalmente enojado. Desencorajado, fechou a porta e afastou-se rapidamente.
O quarto também não ficava aquém, com apenas um colchão no chão coberto por um lençol rasgado e manchado com o que parecia ser a silhueta de um corpo. Sentiu uma onda de desconforto, mas não quis perder muito tempo.
O que encontrou na cozinha não foi mais promissor. O lava-loiça atulhado de loiça suja, as paredes impregnadas com uma camada de gordura e o ar pesado de poeira. Sentia-se um fedor a decomposição e uma mancha escura e viscosa vazava desde a parte inferior do frigorífico.
Olhou para as mãos e percebeu que estavam sujas de uma gosma escura. De onde? Já era impossível perceber. Aquela situação parecia cada vez mais um pesadelo surreal.
De repente, o som do estilhaçar de um copo cortou o ar. Voltou rapidamente à sala e o choque foi instantâneo.
Um corpo em decomposição e completamente irreconhecível estava no exato sítio onde Carolina se sentou momentos antes. O cadáver mantinha as mãos unidas como se ainda segurasse o copo agora estilhaçado no chão. Sentiu um nó na garganta e, ao olhar para o copo na mesa, sentiu o estômago revirar: estava cheio de lama escura repleta de minhocas vivas.
Deu alguns passos atrás enquanto tentava aguentar o café no estômago e a sua atenção foi toda para a última porta do corredor ao vê-la abrir alguns centímetros acompanhada com o chiar das dobradiças. Aproximou-se, cauteloso, a lutar contra a sua consciência que o mandava ir embora.
Atrás dele, na outra ponta do corredor, a porta de entrada abria lentamente. Não emitia qualquer ruído e, por isso, não se apercebeu quando uma figura desfocada, corcunda e desproporcional, com dois olhos grandes e brilhantes adentrava no apartamento e se aproximava.
Ao empurrar a porta encontrou um quarto escuro e sem janelas. Ao ligar a luz revelou uma cena macabra diante dos seus olhos: a parede em frente tinha o retrato de uma cabra desenhado a sangue e, no chão, um pentagrama no centro do piso era adornado nas pontas com velas queimadas.
Sentiu o seu coração disparar e foi tomado por um pânico profundo. Percebeu, por fim, que estava metido num perigo real.
— Tenho de sair daqui. — suspirou, nervoso.
Ao virar-se, deu de caras com aquela entidade que agora quase o tocava e, com dois passos atrás, entrou no quarto.
A entidade soltou um rugido pela sua boca disforme antes do seu longo braço puxar a porta, que bateu e voltou a abrir para mostrar que a entidade desapareceu. Sem perder mais tempo, Alexandre correu pelo corredor e para fora do apartamento.
Ao aproximar-se do elevador, encontrou a porta já aberta e entrou sem pensar duas vezes. Carregou no botão do rés do chão antes de procurar o telemóvel nos bolsos. Fez uma chamada cujo sinal soou apenas uma vez e, ao atenderem, apenas recebeu um feedback agudo que quase o deixou surdo antes da chamada cair.
Desistiu e guardou o telemóvel ao mesmo tempo que percebeu que o elevador não parou no rés do chão e seguiu em direção ao subterrâneo.
Quando a porta se abriu, deu por si no estacionamento. Era um local iluminado apenas por umas lâmpadas fracas que emitiam uma luz alaranjada e as manchas de óleo no chão de cimento refletiam a luz débil.
Estavam alguns carros estacionados que lhe dificultavam a visão do local e isso deixava-o apreensivo. Ao sair do elevador, percebeu um gradeamento fechado ao lado, que daria para as escadas do prédio.
Apesar do silêncio inquietante, não demorou a perceber a existência de uma porta entreaberta que dava para a rua, a alguns metros próxima ao portão da garagem.
Era uma promessa para a sua liberdade.
Começou uma lenta caminhada em direção à porta, atento a qualquer movimento. Percebeu que cada um dos lugares de estacionamento tinha uma divisão para arrumações e que apenas uma estava aberta e sem nenhum carro estacionado em frente.
Parou repentinamente quando, do outro lado do gradeamento fechado, um vulto caiu pelo vão das escadas e embateu no chão com um som seco. Virou-se lentamente, com medo do que iria ver e preocupado porque, certamente, era mais um problema.
Não teve tempo sequer para perceber o que estava a acontecer quando ouviu um remexer vindo da arrumação escura alguns metros à frente. Horrorizado, assistiu enquanto o cadáver de Carolina arrastava uma das pernas e se aproximava rapidamente. Aquele cadáver movia-se com uma agilidade assustadora.
Alexandre correu de volta para o elevador, mas a porta fechou e terminou a sua fuga. Os seus olhos procuravam desesperadamente uma saída que não existia quando o cadáver abrandou a alguns metros, mantendo-se entre ele e a porta que levava à liberdade.
Alexandre não desviava o olhar e cada passo que a criatura dava era um espasmo que apertava a sua garganta. Afastou-se para perto do gradeamento enquanto as lágrimas ameaçavam sair e as suas pernas trémulas quase o derrubavam. As suas costas encostaram-se às grades geladas e estava prestes a render-se.
De repente, as duas mãos desproporcionais da entidade corcunda vieram do escuro atrás dele e bloquearam a sua boca e nariz com uma força aterradora. Ser puxado para trás com violência fez com que a sua cabeça embatesse contra as grades, que soltaram um som metálico horrível. A visão turva e o sufocamento faziam-no lutar com todas as suas forças, mas não se conseguia libertar. Debatia-se, mas estar preso daquela forma enquanto via Carolina aproximar-se deixava-o em pânico.
Num movimento rápido, tirou o telemóvel do bolso e direcionou o ecrã iluminado direto à cara de Carolina, que soltou um grito agoniante enquanto se afastou e tentou proteger-se da luz. Utilizou a mesma tática com a entidade, que rapidamente o largou e desapareceu na escuridão.
Deixou-se cair de joelhos enquanto recuperava o oxigénio que lhe roubaram e tossiu para recuperar a voz enquanto Carolina o olhava fixamente. Alexandre olhou-a de volta, enraivecido, de telemóvel na mão e pronto a usá-lo novamente.
De repente, as lâmpadas fluorescentes no teto acenderam e iluminaram todo o local com uma luz branca intensa. Carolina desfez-se em várias baratas que rapidamente fugiram para todos os buracos possíveis.
Assustado, Alexandre levantou-se e correu para fora daquele local assombrado.
Com toda aquela comoção silenciada, parece que nada aconteceu.

***

O corpo inerte de Carolina, ainda sentado no sofá, permanecia quieto quando uma barata emergiu da cavidade bocal do cadáver, atravessou o rosto e desapareceu numa órbita ocular vazia.


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